quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Vergonha.

Ainda passava um jornal na televisão quando ele caiu no sono. A garrafa pairava levemente vazia ao lado. Ele já roncava como um urso quando o timer expirou e a luz azulada se foi. Quando acordou buscou alguma explicação com a memória, ela respondeu com uma boa dor de cabeça. Tinha passado horas e era ainda noite, tinha algumas coisas em mente, mas antes havia que ter alguma claridade ali na rua. Estava frio demais e nem se via um palmo a frente com aquela névoa toda. “Loucura!” foi a única resposta que o homem deu a sua idéia louca de buscar uns fósforos no mercadinho ainda aberto ao lado. Loucura.
Coçou a barba, mijou de tábua abaixada e nem lavou as mãos. Seu senso de higiene havia sido digerido após anos de solidão naquele apartamento apertado e sujo. Era muito confortável lá, ele sempre se orgulhou de seu conforto, mesmo que ele não seja bem visto pelos arredores. Trinta e cinco anos, cara de quarenta, corpo de sessenta. Puxou mais um cigarro da mesa e olhou as horas. Meia-noite e meia. Na televisão só passava aqueles desenhos que ele detestava. Clássicos, se eles eram desenhos clássicos o que faziam nesse horário da programação? Se fossem clássicos de verdade passariam depois do jornal e antes da novela. Fumou, fumou, acendeu outro e fumou mais. Seu pulmão sempre fora de ferro, nunca havia pegado alguma doença nele, fumava desde os doze e nunca teve algum acesso de tosse. “Esse negócio de câncer é loucura!” gritava ele com os homens. Loucura.
Amigos. Amigo era uma palavra que não ouvia por muito tempo. Faziam exatos quatro meses que perdeu seu último amigo. Atropelado às seis da manhã na estrada. Ele achava absurdo, o que seu amigo fazia lá? No meio do nada, às seis? Bom, o que ele lembrava era de um enterro e essa desculpa para morte de Nei, o atropelado na estrada.
Levantou e foi beber mais um leite puro. Bebeu dois copos inteiros e sentiu a bexiga estourar de novo. Correu para o banheiro e teve um deleite de um minuto maravilhoso.


- Sabe, eu não tenho vergonha mesmo! – falava o mondrugo com cheiro de pinga.
- Nem um pouco? Não queria outra vida? – o homem sentado ao lado acompanhava a conversa.
- Nem um pouco. Eu nasci assim! Deus me fez assim. Por que eu teria vergonha do que Deus fez comigo?
- E dos homens, não tem vergonha do que eles podem pensar?
- Não.
- E das mulheres?
- Sempre me faltou, não tenho mais vontade mesmo.
- Vive como então?
- Nos puteiros! Aonde mais? Você acha que um homem como eu, assim, consegue alguma mulher sem pagar por ela?
- Pensei que podia haver alguma esperança, nunca se sabe.
- Mentira! Mentiram pra todos nós a esperança está morta e enterrada. A última coisa que morre é o medo!
- Medo? Do que?
- O que? – Bebeu mais um gole de cachaça.
- Por que o medo é o último que morre?
- Porque temos medo da morte.
- Você tem?
- Tenho. Tanto quanto você.
- Mas vergonha não, nem da vida?
- Não.
- E como você vive assim?
- Do mesmo que o seu. Passo noites em claro vivendo uma vida falsa que não tenho nem nos sonhos.
- Sei.
- Aquela que o mundo nos vende. Ela vem com desconto pela televisão.
- E vida social?
- Só essa que tenho agora. Com gente que nem você: desconhecida.
- O senhor é bem mais novo do que parece.
- Eu não pareço nada.
O homem não teve coragem de responder, o comentário havia se convertido em ferida. O mondrugo levantou e virou outro gole longo.
- Se quer fazer algo de sua vida, tente não ter medo. Mate-a antes do fim, e talvez você tenha alguma dignidade em vida.
- Juro que tentarei. – O homem levantou e riu. Mais um bêbado. Apertou-lhe a mão viscosa e teve nojo. Aquilo não era homem, era algo, menos homem.


O Mondrugo voltou para casa, tomou dois copos de leite, mijou e teve seu deleite, abriu a gaveta do criado-mudo, tirou o revolver do falecido pai e estourou os miolos durante um comercial.

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